Joana Maurício
«Acredito que só deixamos de ser crianças no dia em que perdemos a curiosidade pelo mundo e deixamos de nos encantar com as pequenas coisas. E eu ainda sou muito curiosa e quero poder ainda encantar-me por muitos anos. »
Joana Maurício, Portugal
A Joana Maurício é doçura, dádiva e sabedoria leve. É mestra de histórias em verso e de movimento, longo ou breve.
Chamou a si a responsabilidade de educar — pessoas pequenas e crescidas — enquanto educadora de infância e, agora, enquanto escritora, formadora e mediadora de leitura com o seu projeto educativo e cultural Joana Pestana.
Leva consigo livros, dança e curiosidade para criar perguntas, respostas e encantamento em quem a recebe.
Que é para, para ti, educar? Achas que, hoje em dia, a sociedade e os governantes dão o devido valor à educação?
Educar, para mim, é oferecer condições e ferramentas necessárias para alguém crescer capaz de ser autónomo nas suas decisões e se tornar cidadão. Sendo, ao mesmo tempo, uma pessoa empática, responsável e informada, mantendo a curiosidade pelo mundo e por aprender sempre mais. Foi isto que ser educadora de infância me ensinou.
Infelizmente, temo que nos dias de hoje o que mais se vê são os quadros de honra, as inúmeras competências académicas que adquirimos, em detrimento do saber-ser e saber-estar e, sobretudo, ser e crescer feliz.
Sendo a leitura instrumento de conhecimento, de formação de pensamento crítico e de estímulo da criatividade, por que razão é ainda tão baixa a taxa de leitura em Portugal? Não terá o Estado, e outros agentes de governação, a responsabilidade de fomentar o conhecimento e a criatividade das pessoas que os elegem? Que alterações proporias para Portugal, relativamente ao papel da leitura e dos livros na educação?
Felizmente, continuam a existir e a insistir as bibliotecas públicas e as bibliotecas escolares/professoras bibliotecárias que, com o seu trabalho tão valioso, ajudam a colmatar essa taxa tão baixa… Ter um livro implica, para alguns, não comprar muitas outras coisas. Apesar de ser essencial à vida, no meu entender, não é um «bem essencial». Infelizmente, não matamos a fome com páginas de papel…
Ainda assim, tenho assistido a cada vez mais pessoas a irem buscar livros à biblioteca, a trocar de livros com os amigos, a assistirem a leituras ao vivo, a aderirem a clubes de leitura, a lojas solidárias que aceitam livros… enfim, uma panóplia de soluções para quem não pode despender do seu salário para a aquisição de livros. Também tem havido uma busca de alternativas à leitura, promovendo-a na mesma, sobretudo on-line, com mediadores de leitura, contadores de histórias, facilitadores e editoras, ainda que seja com o fim da sua comercialização, muitas vezes, acabam por ser promotores muito importantes.
Julgo que há, sobretudo, falta de tempo para o diálogo, para a conversa sobre o que se lê, sobre as leituras que o livro nos oferece. Isso sim, falta cada vez mais e influencia a falta de sentido crítico.
Em lugar de haver um programa que prevê tutor de IA, como um dos nossos políticos há bem pouco tempo referiu, diria que deveria haver um mediador de leitura a fazer trabalho de continuidade em todas as escolas e em todos os ciclos. Isso sim, beneficiaria o país e a literacia em Portugal.
A escrita de livros para a infância surgiu como prolongamento do trabalho que já desenvolvias com crianças, ou sempre esteve latente?
Nunca tinha tido consciência disso senão há alguns meses, quando encontrei, nas coisas que guardo de quando andava na escola, uma folha de papel com uns versos, um pouco toscos, mas até com algum humor, que tinha escrito na aula de educação visual (e que tinha que ver com um trabalho realizado na aula). Julgo que houve essa latência que me passou despercebida até ao momento em que mo perguntaram pela primeira vez (!). Depois desse episódio, acabei por refletir um pouco sobre o que me levou por este caminho e fiz uma pequena viagem no tempo, em que descobri algumas pistas que me trouxeram ao caminho da escrita. Para a infância foi o caminho óbvio, pois o meu trabalho com estas faixas etárias e o meu gosto especial por este género de literatura fizeram com que fosse uma escolha mais natural. Por isso, sim, suponho que posso dizer que foram ambos: um prolongamento do meu trabalho e algo que esteve sempre lá.
A leitura dá mundo, abre horizontes, permite sair de lugares apertados, opressivos até. Ler confere liberdade? Ler é um meio para alcançar a paz?
Ler pode ser tudo isso que referes e mais. É uma forma de nos sentirmos acompanhados, de encontrarmos, por vezes, respostas às nossas inquietações. Por vezes, também nos permite alhearmo-nos do mundo por momentos, ajudando a reorganizarmo-nos (pelo menos, funciona comigo!). Segundo alguns estudos (no Book 2.0. 2025 houve uma apresentação de uma psicóloga — de quem agora não me lembro do nome — em que foram descritas as vantagens da leitura na atualidade e como pode ter tanto ou mais efeito que uma sessão de vinte minutos de mindfulness. Pode, de facto, trazer-nos mais calma, concentração, atenção… ao contrário dos ecrãs. Tem também um efeito terapêutico, portanto! 😊
Sentiste recetividade no mercado editorial português? E ousadia?
Não sei se sou a melhor pessoa para responder a isso, mas vou tentar explicar melhor e dar a minha opinião. Tenho pouca experiência com editoras (plural). Iniciei o meu percurso em 2016 com uma edição de autor e foi esse livro (Grãozinho de Areia) que fiz chegar à editora e que, posteriormente, fez com que houvesse um contacto direto com a mesma. A partir da conversa que tivemos, foi-me pedido que escrevesse o Monstrocedário (2022) e, em 2024, na sequência do sucesso do primeiro, que chegou à 3ª edição, saiu Quem se esconde no armário? As emoções do Cedário.
Já tenho enviado outros textos para editoras que se dedicam sobretudo à edição de livros para a infância e não tenho tido resposta. Hoje, sinto que não é assim tão linear chegar «à fala» com as editoras. Talvez tenha sido sorte de principiante! (Risos.) Mais a sério: sei que o mercado está sobrelotado de autores que querem iniciar-se e outros já consagrados e é difícil, no meio de tanto ruído, decidir o que deve ser editado. Mas também acredito que haja pouco investimento na novidade, em pessoas que querem lançar o seu primeiro livro e que são preteridas pelo autor que será um sucesso de vendas garantido (normalmente, estrangeiro). A visão mercantilista acaba por prevalecer a bem da sobrevivência das editoras.
Qual o teor do teu projeto a solo — Joana Pestana, e qual é a reação dos vários públicos e/ou participantes?
O projeto Joana Pestana é um projeto educativo, artístico e cultural, podemos assim dizê-lo, em que são desenvolvidas oficinas/atividades de dança, de mediação de leitura, de escrita e de formação de docentes na área da dança em contextos educativos, para uma grande diversidade de públicos. A dança é um bom exemplo disso — começou por ser apenas para famílias e crianças, em contextos formais e não-formais, mas depressa cresceu e se foi estendendo até ao público adulto, jovem e sénior. Do que posso observar e do feedback dos participantes com quem vou interagindo, e das avaliações que me fazem chegar (e do que vou sentido ao longo do tempo), as reações têm sido muito boas. Julgo que superou as minhas expectativas iniciais e tem vindo a ser a base de uma maior confiança da minha parte para arriscar mais e melhor.
É sabido que a interligação das várias áreas do conhecimento é benéfica, promove um maior entendimento global. No caso do teu projeto Joana Pestana alias os livros e as histórias à dança e ao movimento. Sentes que esta união de expressões artísticas fortalece cada uma delas? Queres dar algum exemplo?
Sim, sem dúvida que essa transdisciplinaridade enriquece cada uma das áreas artísticas, seja a dança, a literatura ou as artes visuais, ou outras. Todas juntas acrescentam valor a cada uma delas e trazem um entendimento do mundo e de nós próprios muito maior.
O caso da dança, para mim, é gritante. Utilizar o corpo como veículo de uma narrativa que se esteve a escutar anteriormente faz com que essa narrativa ganhe novos significados, que seja entendida na sua globalidade. Outra vantagem que encontro é que, para crianças que não gostam, ou não se sentem à vontade, para se expressar oralmente porque são mais tímidas, dar-lhes a oportunidade de o fazer através do corpo, num grupo onde estão todos em pé de igualdade porque se movem em simultâneo e o olhar não recai sobre si, pode ser altamente benéfico e, a longo prazo, minimizar essa timidez.
Qual é, na tua opinião, o poder da leitura em voz alta? É sobretudo interno e individual, ou transcende essa barreira e passa a ser coletivo?
Na minha opinião, a leitura em voz alta é super poderosa! Para quem lê e para quem escuta, pode ser catártico! Podermos partilhar das mesmas emoções acaba por ser também uma forma de nos sentirmos pertença de um grupo — se for uma leitura coletiva. Passarmos todos em simultâneo pela mesma experiência de leitura (uns com mais, outros com menos intensidade, dependendo do que a leitura nos oferece e do nosso estado de espírito ou experiências pessoais) pode ser deveras impactante e trazer à flor da pele emoções que, por vezes, estão guardadas e precisam de sair. Pode até, diria eu, haver uma certa contaminação e criação de laços invisíveis entre todos. A experiência individual será tendencialmente mais solitária, não querendo com isto dizer menos intensa. Por isso, sim, julgo que o coletivo, em diferentes níveis, transcenderá o individual. Acrescento apenas que, no que respeita ao coletivo, o mediador, da forma como lê, como faz as pausas ou dá ênfase a uma determinada parte do texto, também ajuda a determinar o grau de envolvimento e a profundidade da experiência.
Como poderemos usar mais a nossa voz, em toda a sua plenitude, na sociedade?
Sou pouco ativa nas redes sociais e utilizo-as, sobretudo, para a divulgação e promoção do meu trabalho, mas compreendo o papel e importância que podem ter para disseminar conteúdos, ideais, etc. nos dias de hoje. Ainda assim, gosto de pensar que o trabalho que se faz com grupos, cara a cara, em discussão, com troca de opiniões, na formação com adultos, crianças ou jovens, onde há espaço para se poder aprofundar temas e não ser só seguidor acrítico de alguém com quem nos identificamos, continua a ser um bom veículo de utilização da nossa voz. O trabalho que fazemos no quotidiano, enquanto educadores (que somos todos enquanto sociedade), continua, para mim, a ser o mais valioso.
Como gostarias que as crianças de quem foste educadora te recordassem? E como achas que te recordarão, de facto?
Não faço ideia de como me recordarão, mas gostava que fosse como alguém que lhes deu segurança, colo, amizade, novidade, diversidade, limites, que as ensinou a respeitar o outro… enfim, que lhes deu alguma felicidade na infância e um bocadinho de mundo.
Vejo a infância como uma fase da vida plena de fascínio, mas também extremamente frágil. Há nela uma vulnerabilidade bela, sagrada. Como poderemos compreendê-la e preservá-la melhor? E como poderemos alongá-la até à idade adulta para que possamos ser adultos mais completos?
Devemos, acima de tudo, respeitar cada fase. Querer que façam aquilo que é suposto fazerem em cada idade, sem pressa de os ver crescer, é meio caminho andado para uma infância feliz. E brincar, brincar muito, sempre e, podendo, até ao fim da vida.
Acredito que só deixamos de ser crianças no dia em que perdemos a curiosidade pelo mundo e deixamos de nos encantar com as pequenas coisas. E eu ainda sou muito curiosa e quero poder ainda encantar-me por muitos anos. Por isso a Joana pequenina ainda vive aqui dentro!
Sentes-te valorizada pela sociedade enquanto educadora e escritora para a infância? Enquanto pessoa adulta responsável por muitas aprendizagens de pessoas pequeninas sobre o Eu e sobre o mundo?
Respondo primeiro acerca da profissão: enquanto exerci, posso dizer que não me senti muito valorizada na minha profissão, com exceção de algumas famílias e colegas com quem me cruzei em tantos anos de práticas e eles sabem quem são. Há uma crença de que as educadoras «só» brincam com as crianças e muitas pessoas não compreendem o valor do brincar. O brincar, o lúdico, é o lugar privilegiado onde se aprende em determinadas fases da vida (na verdade, essa ludicidade devia estar presente em todas as fases!).
Mas também penso que parte da responsabilidade parte de nós, da forma como comunicamos (ou não) o que é o nosso ofício, na nossa postura quando somos postas em causa. Há ainda pouca segurança na forma como nos valorizamos, pois sentimos que também não somos valorizadas dentro da classe docente. É um caminho que está a ser feito e que é muito duro.
Enquanto escritora, não sei responder, honestamente. Sinto que o valor que nos é atribuído, pelo menos parte dele, advém de um lugar que terá muito mais de comercial do que o valor estético ou literário. Nesse campo, ainda estou a tentar perceber o meu valor. Busco saber sempre mais para escrever melhor, com mais qualidade.
Diz-se que quem escreve, fá-lo para continuar depois da morte. E tu, Joana, por que razão escreves?
Só sei que gosto de escrever. Se fico para memória futura, o tempo o dirá.
Links importantes:
https://www.instagram.com/_joana_pestana/
https://www.facebook.com/profile.php?id=61579153982196
https://www.facebook.com/joana.g.mauricio/
https://www.instagram.com/joana.goncalves.mauricio/
E-mail: info@joanapestana.pt
Dezembro, 2025
Texto escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.
Joana Maurício — projeto Joana Pestana